domingo, 9 de novembro de 2014

Sombras do Passado - Parte Final

   Um quarteto de homens descia pela trilha de uma colina arborizada, seguidos por um homem a cavalo. O caminho levava diretamente para Florence, Montana. O xerife Al Fitzpatrick era o homem a cavalo, com a arma em punho, logo atrás de Raymond Corbett e seus três comparsas. Corbett e os outros três iam a pé.
   - O que espera fazer quando chegar lá? - perguntou Corbett.
   - Já disse: rever os velhos amigos.
  - Sei... E quando os velhos amigos nos receberem à bala? Vai continuar gracejando?
   Fitzpatrick não respondeu. O tempo todo Corbett estava tentando levar a conversa para aquele assunto, na esperança de ganhar tempo.
  - Você não tem ideia dos homens que estão lá! Na primeira saraivada a gente vai virar mingau!
   - Conversa. Primeiro eles vão querer saber quem é o homem que está levando o velho xerife Corbett numa bandeja de prata pra eles - disse Fitzpatrick. - Aposto como nesse momento eles já sabem que estamos indo pra lá - acrescentou, olhando nas colinas ao redor.
   Agora eles já estavam no final da descida, e o trecho que se estendia pela frente era uma planície levemente ondulada. Não faltava muito agora para chegarem na cidade.
   - E você pretende enfrentar todos eles sozinho? - perguntou Corbett, em tom de desdém.
    - Não me tome por principiante, Corbett. Já mandei pro inferno atiradores como Lefty Sam e Jack Strobel.
   Raymond Corbett absorveu aquela informação. Pensou em perguntar algo outra vez, mas hesitou e não disse mais nada. Fitzpatrick achou melhor assim.
   Os quatro foram caminhando pela velha estrada que levava para Florence, com o xerife Fitzpatrick sempre atrás, montado em seu mustang. Ele se lembrava bem do lugar dos seus tempos de infância. Um leve sentimento de nostalgia chegou até ele ao passar por aquelas paragens. Logo tratou de afastar esse sentimento da mente. Estavam se aproximando da cidade e ele sabia que tinha que estar com o pensamento calmo e os nervos no lugar.
   Em poucos minutos a silhueta das primeiras construções de Florence foi surgindo. Era perto de meio-dia e tudo estava calmo. O grupo avançava devagar. Fitzpatrick seguia o leve balançar do cavalo, de olho nas construções que iam aparecendo. Em poucos minutos eles estavam entrando pela rua principal. Ou o que se parecia com uma.

   - Parem - ordenou Fitzpatrick. Ao que o quarteto obedeceu.
   Florence era agora uma cidade-fantasma. Ou o que tinha restado de uma cidade-fantasma. O único alpendre de pé era o do velho armazém de Billy Grimes. O Montana Estábulo estava irreconhecível, quase completamente desabado. Todas as construções estavam com pelo menos metade do teto ruído, menos uma. Ao final da rua principal, consumido pelas intempéries do tempo, mas com o teto ainda de pé, de frente para eles, se erguia um prédio de dois andares, largo e que se destacava facilmente dos demais. Logo acima do seu telhado havia uma grande placa com a inscrição GOLDEN NORTH SALOON.
   Era lá que a atenção de Fitzpatrick estava agora. Um grupo de seis homens estava em frente ao saloon. Um instante atrás não havia ninguém na frente do prédio e um instante depois eles estavam lá, um deles com um rifle na mão, apoiado no ombro. Os dois grupos se encararam por um tempo, cada um em uma extremidade da rua. E então começou a ventar.
   Com uma ordem, Fitzpatrick fez o quarteto avançar. O vento passava pela rua levantando uma leve nuvem de poeira e fazia os pregos de cada madeira de pé gemer e estalar. Os seis homens observavam a aproximação do cavaleiro e dos homens que caminhavam logo na frente. Quando a distância encurtou para dez metros, Fitzpatrick mandou Corbett e os outros pararem.
   - Xerife Corbett, eu suponho? - disse o homem com o rifle apoiado no ombro, olhando para Raymond Corbett. Era corpulento, tinha a cara larga e uma barba rala, por fazer. Devia ter seus cinquenta anos. Estava claro que aquela pergunta era uma zombaria. O homem sorria e era nítido que ele sabia muito bem com quem estava falando.
   - Boone, o canibal - respondeu Corbett. - Não te aceitaram no inferno?
   - Tentaram me mandar pra lá, mas o diabo não quis - respondeu Boone, apontando para uma queimadura de corda no pescoço. - Me ajudou a não esquecer você, Ray - acrescentou, alisando a marca.
   - Salve, xerife! - disse um homem ao lado de Boone. Usava um chapéu de copa chata, aba larga e por debaixo dele saía uma cabeleira loura que ia até os ombros - Parece que a idade chegou pra você - disse, indicando Fitzpatrick com um aceno de cabeça. Ele sorria.
   Corbett se virou para olhar um instante para Fitzpatrick, depois tornou a olhar para o homem louro: - Não o tome por novato, Waco. Pode se arrepender.
   - Me tire uma curiosidade, xerife - disse um homem que usava uma cartola e tinha os polegares enfiados dentro dos bolsos do colete cinza que usava por cima da blusa. Tinha a aparência de um jogador profissional e ao menos numa primeira olhada não estava armado. - Por que voltou para Florence depois de tanto tempo?
   - Porque estou duro - respondeu Corbett, com simplicidade. - Voltei pra pegar o resto do ouro que está guardado na mina. Eu explodi a galeria entes de me mandar, há vinte e cinco anos. Estamos cavando há mais de um mês.
   - Sim, nós sabemos - disse Boone. - Estamos por aqui há quase uma semana, esperando você pegar o nosso ouro.
   - Como vocês souberam da minha volta?
   - Mandei o nosso Cliff aqui ficar sempre de olho nos arredores e me avisar de qualquer movimento nas minas - disse Boone, apontando para o sujeito que estava à sua esquerda. Um homem de cabelos escuros e bigode vasto. Era um pouco mais alto que Boone.
   - E então ele chegou com a grande notícia - continuou Boone, sorrindo. - Eu não achava mais que você voltaria depois de tanto tempo, Ray. Mandei publicar o anúncio fúnebre em alguns jornais e os que estão aqui foram aqueles que leram o anúncio.
   Fez-se silêncio. Corbett parecia pensar em tudo que acabara de ouvir. Fitzpatrick notou que as atenções agora se voltavam para ele.

   - Parece que o rapaz é tímido - disse o homem de cartola com pinta de jogador. Ele se dirigia a Boone, mas tinha os olhos em Fitzpatrick.
   Boone sorriu.
   - Não quer se apresentar, rapaz? - disse, com os olhos em Fitzpatrick - Afinal, você nos trouxe o nosso velho amigo Ray.
   Os outros riram. Fitzpatrick não respondeu de imediato. Apeou do cavalo e guardou seu revólver no coldre. Ficou ao lado de Corbett e seus comparsas, um pouco atrás.
   - Sou o filho de Ryan Fitzpatrick. Também li o anúncio no jornal.
   Houve um instante de silêncio. Então um homem magro e de cabelos grisalhos falou:
   - Não acha que está muito jovem para participar desse acerto de contas, rapaz?
   Fitzpatrick reconheceu o homem. Era Billy Grimes, o antigo dono do armazém de Florence.
   - Não, Grimes. Também tenho algumas contas para acertar.
   Um leve tom de surpresa apareceu no rosto de Grimes ao ouvir seu nome ser pronunciado. Ele olhou para Boone: - Sabe que o nosso amigo tem peito, canibal?
   - Eu já disse para não subestimá-lo - relembrou Corbett, antes que Boone pudesse dizer algo. - Ele já liquidou homens como Lefty Sam e Jack Strobel - completou.
   Ao ouvir isso Grimes assobiou baixinho. Boone se empertigou.
   - É verdade isso, rapaz?
   Fitzpatrick assentiu, sem nada dizer.
   - Então é uma pena que não haja espectadores - disse Boone. - O encontro entre Waco Dolan, Roger Laval, Billy Grimes, Freddie Dobbs, Cliff Durham, Boone, o canibal e o homem que matou Lefty Sam e Jack Strobel... Todos lendas do Oeste - ele fez um gesto abarcando todos os presentes. Fitzpatrick percebeu que ele não sitou o nome de Corbett.
   As palavras de Boone ressoaram e foram levadas pelo vento. Silêncio outra vez.
   - Quem são esses três, Ray? - perguntou Grimes, quebrando o silêncio e apontando para os três comparsas de Corbett.
   - Eu os encontrei em Bozeman e os trouxe para me ajudar a cavar na mina.
   - Eles sabem cavar sepulturas também?
   - Sim, sabem - disse Corbett, sorrindo pela primeira vez. - Eles podem cavar uma pra você, se quiser.
   Os outros riram. Inclusive Grimes, que acrescentou: - Não podem esquecer de levar as flores.
  Mais risadas. O xerife Fitzpatrick conhecia aquele tipo de conversa. Primeiro chegam sorrisos, depois mentiras. Por último, o tiroteio.
   - Ainda falta cavar muito para chegar ao ouro, Ray? - perguntou Waco Dolan, o louro.
   - Não muito agora. Acho que mais dois dias bastam.
   - Ótimo. Essa cidade-fantasma já estava me entediando.
   - Talvez tenha que passar a eternidade aqui, Waco.
   - Talvez tenha.
   A atmosfera mudou e ficou repentinamente tensa. Todos os seis homens tinham agora os olhos em Corbett e Fitzpatrick. Só o vento fazia algum ruído. A qualquer momento, agora, pensou Fitzpatrick. Durante quase um minuto ninguém falou, até que uma rajada mais forte de vento soprou, levantando a poeira da frente do saloon. Boone baixou seu rifle do ombro em um movimento muito rápido, ao mesmo tempo em que Waco e os outros sacavam suas armas. Fitzpatrick sacou sua arma ao mesmo tempo em que corria em direção a casa à sua direita, atirando para o lado em direção a Billy Grimes. Viu de relance o xerife Corbett pegar um dos seus comparsas pelo pescoço, usando-o como escudo. Uma série de disparos ecoaram acima do som do vento. Fitzpatrick viu um dos seus tiros acertar Grimes na altura do estômago, enquanto dois dos comparsas de Corbett parados no meio da rua foram atingidos várias vezes e caíram gritando. O terceiro, que Corbett usava de escudo, também foi atingido e gritava enquanto era arrastado em direção a uma casa do outro lado da rua. O cavalo relinchou alto, Fitzpatrick disparou mais três vezes antes de desaparecer dentro da casa à sua direita e sua última visão foi de Corbett largando o comparsa-escudo na rua e correndo para a casa do outro lado, enquanto Grimes caía no chão se dobrando com as mãos na barriga.

   Os disparos pararam por um instante e só se ouvia agora o relincho do animal. Fitzpatrick olhou para fora e viu seu cavalo caído no meio da rua, tentando se levantar com as patas dianteiras, a parte traseira do corpo imóvel enquanto ele relinchava alto. Havia sangue no chão ao redor. No momento seguinte os disparos recomeçaram e atingiram pontos ao redor de Fitzpatrick, a madeira se despedaçando e levantando uma nuvem de pó e estilhaços. Ele se levantou e correu para os fundos da casa em ruínas.
   Enquanto recarregava, ele olhou rápido para o lado de fora dos fundos da casa. Ouvia mais disparos e vozes que gritavam, mas não conseguia entender o que diziam pois tudo era abafado pelo relincho desesperado do cavalo. Ele avançou pelo o que antigamente era a rua paralela à rua principal, agora um amontoado de madeira podre e mato. Mal deu cinco passos e viu surgirem mais a frente as figuras de Waco Dolan e Cliff Durham. Eles o viram e atiraram, mas Fitzpatrick já havia se refugiado atrás de uma cerca de traves atravessadas.
 Os disparos continuaram, resvalando perto de onde Fitzpatrick se encontrava. De barriga no chão, ele se arrastou uns cinco metros para o lado e se levantou de arma em punho olhando na direção de onde vinham os disparos. Com dois tiros liquidou Dolan, o louro. Cliff Durham atirou em sua direção, berrando: - MORRA, BASTARDO!
   Seus tiros erraram o alvo e Fitzpatrick o matou com um tiro no peito. Durham caiu próximo a Waco Dolan, o sangue manchando a terra.
   Fitzpatrick continuou em meio ao mato e aos restos de madeira até estar encostado nos fundos da última casa antes do saloon. O cavalo não relinchava mais e tudo era silêncio. Fitzpatrick ficou parado, aguardando, só o vento se fazendo ouvir. Ora mais forte, ora mais calmo. Os minutos se passaram até que um tiro de rifle ecoou do outro lado da rua. Silêncio. Depois mais dois tiros de rifle e um tiro de revólver. E silêncio outra vez. Com cautela Fitzpatrick saiu de trás da casa e se aproximou do saloon pelo lado esquerdo. Debaixo do alpendre ele viu o corpo de Billy Grimes dobrado na posição em que o vira cair, no começo do tiroteio. Olhando ao redor e com os nervos retesados, ele avançou até perto do corpo de Grimes e se protegeu atrás de uma das traves do alpendre. Não se via ninguém. Que teria acontecido? Quem estava com o rifle era Boone, o canibal. Teria ele matado Corbett?
   Fitzpatrick continuou atento, observando. Era difícil ouvir algo que não fosse um disparo, pois o som do vento abafava tudo o mais. Por isso ele olhava freneticamente o entorno. Seu cavalo estava deitado no chão, em silêncio, o ventre subindo e descendo em movimentos rápidos. Fitzpatrick sabia que o animal estava nas últimas.

   Passados alguns instantes, sua atenção se deteve numa das casas perto do cavalo, do lado onde Corbett tinha desaparecido no começo do tiroteio. Vira um movimento e depois de alguns segundos observando teve certeza de que havia alguém lá, provavelmente também olhando o entorno antes de se mover. Então o homem saiu para a rua principal, com cautela. Era Corbett. Empunhava o rifle de Boone. Ele começou a avançar em direção ao saloon, sempre olhando ao redor.
   Corbett parou perto do cavalo, olhando para o saloon. Fitzpatrick vinha avançando calmamente, o revolver em punho na mão direita apontado para o chão. Corbett esperou. O jovem avançou devagar, os dois sempre se olhando, até ficar a vinte passos dele. Então parou. Perto de Corbett, o ventre do cavalo não se movia mais.
   - Existe um ditado no Oeste - disse Corbett, elevando a voz para se fazer ouvir acima do vento - que diz que quando o homem com o rifle encontra o homem com o revólver, o homem com o revólver já está morto.
   Fitzpatrick o encarou. Então disse, também elevando a voz: - Pois o meu ditado diz que é preciso saber quem é o homem que empunha o revólver.
   Houve um momento de silêncio em que os dois se encararam. O vento jogava a poeira cada vez mais para o alto e então eles atiraram, apertando o gatilho quase ao mesmo tempo. O som dos disparos estavam quase desaparecendo quando Corbett caiu de joelhos, o rifle ainda em punho. Então ele rolou para o lado e ficou estendido de barriga para o alto.
   Fitzpatrick se aproximou e parou ao lado de Corbett a tempo de vê-lo olhando para o céu ainda com vida, até que seus olhos ficaram opacos e imóveis.
   Ele olhou ao redor e não havia mais sinal de vida. Agora tudo estava acabado. Todos mortos, seu pai e seu tio vingados, tudo acabado. Foi até seu cavalo, também morto, e pegou os alforjes e a sela. Sabia que eu algum lugar nos arredores encontraria os cavalos dos seis homens que haviam acabado de morrer.
   Fitzpatrick pensava em como seriam as noites de sono dali para frente. Iria direto para o rancho do tio contar o ocorrido. Talvez ele também dormisse melhor a partir de agora. Só isso já faria tudo ter valido a pena.

   Com esses pensamentos ele deixou Florence. Desta vez para sempre.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Sombras do Passado - Quarta Parte

   Al Fitzpatrick despertou de um sonho muito vívido. Aquele despertar repentino em que se abre os olhos completamente com um único movimento. Como sempre acontece nesses casos, ele demorou a sair do sonho mesmo com os olhos já abertos; a realidade ao seu redor ia se fazendo presente os poucos. Até que ele olhou à sua volta: estava no pequeno bosque em que acampara na noite anterior, a fogueira agora não mais que um pequeno monte de cinzas. Uma leve aurora começava a iluminar o céu anunciando o amanhecer.
   Se desvencilhando do cobertor, ele se sentou e por um instante ficou olhando para os restos da fogueira. No sonho que acabara de ter ele estava em um grande barco, em meio a um mar calmo, enorme. Havia um lampião no mastro bem acima dele que iluminava o convés e os arredores do grande barco. E todo o resto era escuridão. Mas como em todo sonho, mesmo sem poder ver para além da área iluminada, de algum modo ele sabia que estava navegando num mar sem fim. O que mais o impressionava era a velocidade terrível com que o grande barco viajava e o fato de isso não provocar quase nenhuma onda ao redor. No sonho ele tinha plena consciência da sua solidão. E então acordou.
   Pensou mais alguns instantes sobre o que acabara de sonhar, tentando pôr algum significado naquilo. Depois se levantou. Juntou alguns gravetos sobre as cinzas que tinham restado da fogueira para fazer fogo outra vez. Fazia uma semana agora que tinha deixado Bozeman para trás. Sabia que estava muito perto do seu destino. Florence, Montana. Esperava chegar no armazém de Thomas Elliot perto do meio-dia. O armazém era o local de encontro publicado no jornal. Fitzpatrick tinha certeza que a essa altura o encontro já tinha acontecido. Estava marcado para o dia 25 de setembro e esse era o amanhecer do dia 27.
   Depois de beber um pouco de café ele partiu. Saindo do pequeno bosque em que passara a noite adentrou pela imensa planície e seguiu em direção aos Montes Cleveland. Eles estavam agora bem delineados na linha do horizonte, quebrando a paisagem monótona que havia reinado até um dia antes: céu em todas as direções. 
   Fitzpatrick parava de meia em meio hora para olhar a imensa planície ao seu redor, utilizando seus binóculos. A cada vez que fez isso não encontrou nada de anormal. Melhor assim, pensou. O dia estava nublado como todos os outros antes desse e por volta do meio-dia ele começou a procurar por uma árvore. Desde que deixara o bosque para trás, pela manhã, ele não avistara nenhuma árvore. Mas agora ele sabia que estava perto de avistar uma. O armazém de Thomas Elliot ficava a duas horas de cavalo de Florence, no meio da planície e sempre fora conhecido por ter ao seu lado um grande carvalho. A única árvore num raio de 20 quilômetros. Logo avistou com seus binóculos um contorno na relva que, tinha certeza, era o grande carvalho que procurava. Estava bem na sua frente, quase na linha do horizonte.
   Uma hora depois Fitzpatrick podia avistar a árvore a olho nu, ao longe. Parou numa parte um pouco mais alta da planície, a duas milhas de distância do armazém. Apeou do cavalo e fez o animal se deitar. Pegou os binóculos e se agachou. A relva alta os protegia de algum xereta que pudesse estar por perto. Apontou os binóculos e viu com clareza a grande árvore e a antiga construção que não via há vinte e cinco anos.
   Naquele tempo o armazém de Thomas Elliot era uma etapa obrigatória para quem vinha das montanhas à planície. O velho Elliot era a cortesia em pessoa. Dezenas de testemunhas estavam prontas pra jurar sua honestidade. É de se imaginar a ira geral quando se soube que ele fazia parte do bando de assaltantes que aterrorizavam os mineradores. Elliot era um precioso informante do bando. Foi surpreendido pelos vigilantes quando arrumava suas coisas para escapar e enforcado no grande carvalho junto ao seu posto comercial. Fitzpatrick ficou pensando na última visão de Elliot: pendurado com a corda no pescoço, olhando para o barracão que tinha sido o seu ganha-pão por tanto tempo. Provavelmente morreu olhando para a placa que Fitzpatrick via perfeitamente agora, com a ajuda dos binóculos: THOMAS ELLIOT'S TRADING POST.
   Passou a tarde inteira observando o armazém e não viu nenhum sinal de vida. Tinha quase certeza que estava deserto mesmo. Não tinha cara de armadilha. Já estava quase escurecendo e ele decidiu ir até lá. Montou seu cavalo e se aproximou devagar. Passou ao lado do grande carvalho examinando o terreno. Perto da trave para os cavalos ele encontrou rastros recentes de cavalos ferrados. Pelo menos cinco. Apeou do cavalo e, de arma em punho, entrou decidido no armazém. Vazio.
   Mas com muitos sinais de habitação recente. Fitzpatrick foi andando pelo local. Havia algumas mesas velhas ainda de pé e somente uma cadeira. O balcão do bar ainda estava bem sólido e sobre ele havia duas garrafas vazias que não estavam empoeiradas como todo o resto. Além disso, havia algumas pontas de cigarro fumados recentemente. Vou passar a noite aqui e quando amanhecer irei a Florence. Não creio que haja algum atrasado que possa chegar no meio da noite.Em todo caso, estou dormindo com um olho só há uma semana.
   Foi uma noite sem sonhos e na manhã seguinte ele partiu. Estava ventando frio e ele não teve dificuldades em seguir os rastros dos cavalos. Em menos de duas horas chegou ao velho caminho que ia até Florence através de um pequeno grupo de colinas arborizadas. Em certa altura o caminho se dividia e Fitzpatrick apeou para examinar melhor o terreno. Os rastros dos cavalos continuavam pelo caminho que descia pelas colinas e que, ele sabia, terminava em Florence. Mas o caminho que ia dar nas minas nos arredores da região também parecia frequentado. Acho que estou entendendo o que se passa aqui, ele pensou. Montou e tocou o cavalo pelo caminho das minas.
   Não demorou muito até ele perceber que se aproximava de uma mina. Deixou o cavalo escondido nas árvores e se aproximou do local a pé. Chegou a um ponto onde as árvores terminavam e a subida continuava pela encosta, com o caminho levando para um barracão velho não muito longe da entrada da mina, bem característica com traves delineando a boca do túnel. Dava para ouvir nitidamente o som abafado de batidas de vinham lá de dento. A mina fora reaberta. Ao lado do barracão ele contou quatro cavalos. Fitzpatrick se deitou ao lado de uma das árvores e começou a procurar pela sentinela. Tinha certeza que devia haver um homem montando guarda.
   Não demorou para avistar o homem sentado numa pedra numa parte mais alta da encosta. Em vinte minutos, dando a volta pelas arvores, ele chegou por trás da sentinela. Se aproximou bem devagar e mesmo de costas percebeu que era um garoto de uns vinte anos. Sacou o revólver e encostou o cano da nuca dele:
   - Não se mova - ordenou Fitzpatrick. No susto, o garoto deixou cair o cigarro que fumava.
   - N-não ouvi você chegar - disse o garoto.
   Fitzpatrick desarmou-o e o conduziu pelo bosque, em direção a mina. 
   - Vamos pra mina - disse Fitzpatrick. - Não tente nada, garoto. Eu não estou brincando.
   Os dois foram andando pelas árvores até chegarem na grande clareira que circundava a mina. Caminhando em passo firme, Fitzpatrick conduziu o garoto até perto da entrada da mina. Mandou que ele parasse e perguntou:
   - Raymond Corbett está aí dentro, não está?
   - Sim, está. Como sabe?
   - Você vai chamá-lo. Faça ele sair sem levantar suspeitas.
   - Está bem - disse o garoto. E levantando a voz: - Ei, Ray! Precisa vir aqui fora dar uma olhada nisso!
   As batidas cessaram. Em pouco mais de um minuto o som de passos e vozes se tornou bem próximo. Fitzpatrick andou alguns passos para o lado, saindo de trás do garoto. Este ficou parado sem saber o que fazer. Em instantes, um homem com seus cinquenta anos e cabelos grisalhos saiu da mina. Outros dois vinham logo atrás.
   - Qual o probl... - ele começou a perguntar quando seus olhos foram do garoto para o homem três passos ao lado, apontando um revólver diretamente para ele.
   - Não se mova, Corbett. Solte o cinturão.
   Fitzpatrick reconheceu Raymond Corbett na mesma hora. Apesar de ser uma lembrança antiga, ele se lembrava muito bem do rosto do antigo xerife de Florence. Não tinha mudado muita coisa. Os outros dois não estavam armados.
   - Quem é você? - perguntou Corbett, desafivelando o cinturão e deixando-o cair.
   - Sou o filho de Ryan Fitzpatrick.
   Corbett ficou encarando Fitzpatrick, como que absorvendo aquela informação. Por fim, disse:
   - Ora vejam... E como me achou?
   - Vim por causa do seu enterro, Corbett - disse Fitzpatrick, tirando do bolso o recorte de jornal e entregando-o ao garoto, ao mesmo tempo em que sinalizava pra ele entregar o papel para Corbett.
   O velho xerife pegou o jornal e o leu. Uma expressão de surpresa tomou conta de seu rosto. Ele levantou os olhos do papel:
   - Quer dizer que... eles estão aqui?
   - Não encontrei nenhum deles, mas tenho certeza que estão em Florence.
   - Quantos são?
   - Uns cinco ou seis - disse Fitzpatrick. E acrescentou: - Mas vamos descobrir isso logo.
   Corbett o encarou demoradamente.
   - O que tem em mente?
   - Nós quatro - disse Fitzpatrick, indicando com a cabeça os dois homens que permaneciam imóveis e de mãos para o alto atrás de Corbett - vamos até Florence rever nossos velhos conhecidos.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Sombras do Passado - Terceira Parte

   Apesar de a tarde já estar se encaminhando para o seu final, ainda havia um bom par de horas de luz.
  O xerife Al Fitzpatrick avistou o rancho ao longe, um pouco ansioso para conversar com o tio. Estava levando o jornal consigo. O jornal com o anúncio fúnebre que, afinal, era o motivo da sua visita. Durante o trajeto para o rancho ele vinha pensando qual seria a reação do tio ao ver o anúncio. De qualquer modo, agora ele estava bem perto de saber.
   Conforme ia se aproximando do rancho, ele avistou alguém que estava no alpendre, na entrada da casa. Não demorou muito para reconhecer que era Dolores, a empregada mexicana de seu tio.  Ela olhava para o cavaleiro que chegava ao longe, com uma mão sobre os olhos. Dolores era uma mexicana baixa, morena e que começava a atingir uma certa idade. Havia anos ela cuidava do tio, e muito bem. Um homem velho numa cadeira de rodas sempre precisa de alguma atenção por perto. E era o que a mexicana fazia. Ela logo entrou na casa.
   Fitzpatrick foi chegando nas proximidades do rancho e ao mesmo tempo em que passava por sob a grande placa de entrada, com SILVERBELL escrito em grandes letras pretas, o tio ia saindo da casa, girando as rodas da cadeira com as mãos, e parando perto dos degraus de entrada. Al acenou para o tio, apeou e amarrou a montaria na trave para os cavalos. Caminhou devagar, com o jornal em mãos, até parar na frente do tio.
   - Dolores ainda enxerga longe.
   - É. Parece que os olhos dela não envelhecem.
   - Quase tão bons quanto os de um apache -  brincou o sobrinho.
   - Quase tão bons - repetiu o tio.
   Al olhou para o tio sentado na cadeira de rodas. Não parecia mais velho que da última vez, embora não o visse há um certo tempo. A barba tinha mais fios brancos agora, mas não muito mais que os negros. Estava volumosa e bem feita. Os cabelos é que tinham rareado bastante.
   - Como tem passado, John? - peguntou Al.
   - Sempre nessa maldita cadeira - ele respondeu. Hesitou por um instante e continuou. - Estou surpreso que você não mudou nada. Dizem que o cargo de xerife envelhece um homem.
   Al nada disse e se limitou a dar um pequeno sorriso.
   O tio apontou para o jornal que ele tinha em uma das mãos:
   - Veio me manter informado?
   - Num certo sentido. - disse o xerife, olhando para o jornal. - Há algo aqui que talvez lhe interesse.
   John Fitzpatrick olhou para o sobrinho e coçou a barba por um momento. - Quer um café?
   - Eu gostaria.
   - Então entre. Dolores fez um que ainda está fresco.
   Eles entraram, o tio na frente. Passando pela sala, Al reparou que ela quase não tinha mudado. O sofá estava na mesma posição, assim como as duas poltronas. Em cima da lareira estava a Spencer do tio, pendurada na parede. Passando pelo corredor eles chegaram na cozinha, que ficava nos fundos da casa. Era bem ampla e ainda era possível sentir um leve cheiro de café.
   - O café está ali - disse John, apontando para uma mesa ao lado da pia.
   - Quer também?
   - Sim, um pouco.
   O xerife serviu duas xícaras. O café ainda estava quente, soltando uma leve fumaça. Ele entregou uma xícara ao tio, que estava ao lado da mesa principal da cozinha. Depois se recostou na pia e bebeu um gole. Após um breve silêncio, o tio falou:
   - O que há de interessante nesse seu jornal?
   Al folheou o jornal, parou em determinada página, dobrou o jornal em dois, deu três passos em direção ao tio e estendeu o jornal para ele, indicando o local onde estava o anúncio fúnebre. O tio pegou o jornal e pousou os olhos no local indicado pelo sobrinho. Após um instante seu rosto adquiriu um tom de surpresa. Ele leu, ainda com a surpresa no rosto. Ao terminar, comentou:
   - É um jornal de Tucson de quinze dias atrás. - disse, devagar e em tom pensativo, verificando a borda superior. - Onde conseguiu isso?
   - Toda semana o telégrafo recebe um desses. Eu sempre dou uma olhada.
   O tio voltou os olhos para o anúncio fúnebre, como se o relê-se.
   - Com certeza é o canalha do Corbett. Mas... - ele olhou para o sobrinho, tirando os olhos do jornal - por que ele voltou?
   - Também me fiz a mesma pergunta. - respondeu ele, olhando para o tio.
   - E também não encontrou resposta. - disse o tio. E acrescentou - É estranho. Quantos anos já se passaram?
   - Vinte e cinco anos.
   - Tempo à beça.
   Por um momento os dois ficaram em silêncio. O sobrinho olhando para o tio e este olhando para o jornal, pensativo. Por fim, John perguntou:
   - O que está pensando fazer?
   - Antes de vir pra cá, dei algumas ordens a Mendez. Ele vai se sair bem na minha ausência.
   John Fitzpatrick pousou o jornal na mesa e encarou o sobrinho.
   - Olhe - disse, por fim - eu entendo o que está querendo fazer. Eu também estava lá com seu pai e de certa forma morri também. - Ele passou as mãos pelos braços da cadeira de rodas. Por um instante ele olhou para o lado e sorriu, tomado por uma lembrança antiga. - Seu pai e eu costumávamos ir para o curral pela manhã e ficar montando nos bezerros de lá. Aquela coisa de quem fica mais tempo no lombo do bicho. Depois de uns tombos a gente ficava com a roupa suja de esterco. E sua avó ficava furiosa. - Seu sorriso se alargou. - Eu me lembro dela correndo atrás da gente, louca da vida. Ela tinha os olhos muito verdes, muito bonitos. Seu avô sempre dizia que os olhos dela lembravam a cor das águas do rio Colorado.
   Ele parou um instante, pensativo. Depois respirou fundo e olhou para o sobrinho: - O ponto é que você tem que estar certo do que quer fazer. Nossa família foi vítima daqueles bandidos, mas talvez não haja necessidade desse acerto de contas.
    O xerife olhou para o tio demoradamente.
   - O que você faria se pudesse ir lá?
   - Não sei. - respondeu o tio. - Nada, provavelmente nada.
   Al ergueu as sobrancelhas: - Estou surpreso de te ouvir falando isso.
    O tio girou um pouco a cadeira, olhando pela janela.
   - Eu aprendi que enquanto a gente passa o tempo tentando reaver as coisas que tiraram de nós, mais e mais coisas vão embora. Depois de um tempo tudo o que você quer é estancar o vazamento. Seu pai e eu nunca fomos obrigados a participar do grupo de vigilantes, nós entramos por conta própria. - Então ele se virou para o xerife. - O que você está sentindo, essa vontade de se vingar, não é nada de novo. A vida no oeste é dura com as pessoas e elas sentem vontade de bater de volta na primeira oportunidade. Mas as coisas podem não sair do jeito que você imagina.
   - Disso eu sei, John - respondeu Al. - O mundo não gira ao nosso redor, por mais tentador que essa ideia possa ser nesse momento. - Ele hesitou e disse: - Mas Deus me deu a oportunidade da vingança. Eu preciso ir lá e fazer justiça.
   - Com o poder que Ele nos concedeu - disse John, mais para si mesmo do que para o sobrinho. Al tinha o costume de ler a bíblia por conta do tio.
   John Fitzpatrick sabia que era inútil tentar demover o sobrinho da ideia. Ele tinha perdido o pai por conta daqueles bandidos e também tinha visto um tio inválido por todos aqueles anos por conta desses mesmos bandidos. E ainda era muito jovem para entender certas coisas. 
   Ele refletiu por alguns instantes e disse:
  - Bom, já que está tão decidido só posso lhe dar alguns conselhos.
   - Sou todo ouvidos - disse o xerife.
   - Um anúncio fúnebre, no código daqueles bandidos, significava inimigos a eliminar. Ray Corbett está vivo, mas alguém descobriu e botou o aviso no jornal. E pode apostar que não foi só nesse que você me trouxe. Ray era o chefe do bando e fugiu com todo o ouro. Por isso, quem espalhou esse anúncio com certeza era do bando na época.
   - Eu concluí isso também. Ray Corbett era o xerife de Florence, não era?
   - Exato. Tão xerife quanto você é hoje. - John sorriu. - Mais que os antigos cidadãos de Florence, os verdadeiros inimigos do velho xerife são os bandidos que ele passou pra trás. Quem era do bando e ainda estiver vivo para ver o anúncio vai querer participar do funeral do querido Ray.
   Al Fitzpatrick refletiu por uns instantes, como que organizando aquelas informações.
   - Como você pretende chegar lá? - peguntou o tio.
   - Vou até Tucson e pegar o primeiro trem pro norte.
   - Por onde vai começar?
  - Pelo armazém do velho Elliot. Mas não vou participar do encontro dos velhos amigos.
   Al tomou o último gole de café, posou a xícara na pia e pegou o jornal que estava sobre a mesa. Virou para o tio: - Algo mais?
   - De importante acho que não. Você é esperto e sabe se virar.
   - Bom, então acho que vou indo.
   - Eu te acompanho até a porta.
   Ambos, tio e sobrinho, foram até a entrada da casa. O pôr do sol estava se aproximando.
   - Tome cuidado, Al. Flagstaff precisa de um xerife como você.
   O xerife não respondeu de pronto. Caminhou até o cavalo, guardou o jornal no alforje da sela e foi até onde o tio estava , puxando o animal.
   - Não se preocupe, John. Vou me cuidar.
   Ele montou em seu cavalo.
   - Cumprimente Dolores por mim.
   - Pode deixar.
   Com um último aceno, o xerife partiu. 
   


    

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Sombras do Passado - Segunda Parte

   Com um forte sacolejo, o trem da Union Pacific parou em seu destino final, Bozeman. Al Fitzpatrick desceu do comboio e se dirigiu aos vagões dos animais. Estava cansado, mas satisfeito de estar finalmente no Montana depois de uma longa viagem. Dali em diante o percurso seria feito a cavalo até seu destino, Florence.
   Cerca de duas horas após seu desembarque, o xerife de Flagstaff já estava montado e a caminho de Florence. Pegou o recorte de jornal e conferiu a data do encontro: 25 de setembro no armazém de Thomas Elliot, perto de Florence, Montana. A viagem deveria levar uma semana, por isso ele estava um dia atrasado. Não faz mal, pensou, meu encontro é em Florence e não no armazém do velho Elliot. Ficou imaginando quantos deles estavam vivos e tinham visto o anúncio no jornal, como ele. No fim das contas, não importava muito. Saberia disso dali um semana, com um pouco de sorte.
   Avançar sozinho pela planície não era seguro e exigia suas precauções. Bem antes do anoitecer ele parou e usou seus binóculos para observar ao redor da imensa planície, onde não se via uma árvore. A medida que o sol ia se pondo, Fitzpatrick observava toda a extensão da planície ao seu redor em busca de algum sinal de acampamento ou fogueira. Algum sinal de vida. Após uma última conferida, guardou seus binóculos e começou a tirar a sela do cavalo. Teria que fazer uma fogueira por conta do vento frio do Montana, que vinha das Rochosas.
   À beira da fogueira, enrolado em seu cobertor, ele pensava em Florence. O vento frio o fazia recordar da cidade vinte e cinco anos atrás. Ele era apenas um garoto de nove anos e escutava sua mãe:
   - Ande depressa, Al. Não olhe pra cima.
   Eles estavam voltando para casa pela rua principal e o garoto olhava ao redor. Vários corpos estavam pendurados ao longo das traves do grande Montana Estábulo, enforcados. O vento frio balançava os corpos para frente e para trás, em pequenas oscilações que faziam as cordas rangerem. Mesmo no inverno rigoroso, a decomposição era avançavada e o mal cheiro se espalhava.
   Naquela época, Florence não era a cidade-fantasma que viria a se tornar. Era o tempo da corrida do ouro no Montana, e Florence era maior e mais rica do que Dodge City. Sempre existiram dois métodos para achar ouro. E o mais rápido deles não era arrebentar as costas escavando nas montanhas. Quem agia assim era vítima dos assaltantes e ficava com um punhado de moscas na mão. A mortalidade na planície era alta. Ainda não existiam as ferrovias e transportar cargas de ouro pelas montanhas, que já era dificílimo, ficou praticamente impossível. O vale do rio Cascavel nos Montes Cleveland, o Vale da Morte, o desfiladeiro do Cervo Preto; todos os comboios que partiam para Idaho e Utah tinham que passar por um desses três pontos. Os assaltantes eram bem informados e sempre havia alguém lá, esperando. Tentar sair do Montana com ouro significava dar de cara com eles.
   Um dia, os mineradores organizaram o transporte de ouro em um grande comboio de voluntários e a sorte mudou. A maioria dos bandidos foi morta na tentativa de assalto e uns poucos caíram vivos nas mãos dos voluntários. Com as informações extraídas, em pouco tempo se formou um comitê de vigilantes, liderados por um coronel aposentado da cidade, visto que o próprio xerife de Florence estava envolvido nos roubos. Uma caçada humana se iniciou na cidade. Várias pessoas suspeitas foram arrancadas de suas casas e enforcadas.
   Em um dos últimos enforcamentos coletivos, quando Florence já estava ficando vazia e sem vida, com os primeiros sinais da cidade-fantasma que viria a ser, o pai e o tio de Al Fitzpatrick foram baleados. Um grupo de bandidos adentrou o Montana Estábulo, atirando e berrando, e libertou dois homens. Partiram instantes depois, numa ação rápida. O pai de Fitzpatrick morreu no estábulo e seu tio foi atingido na espinha. Depois de uma semana lutando contra a febre, sobreviveu, mas ficou para sempre incapacitado numa cadeira de rodas.
   Em pouco tempo, a família se desfez dos últimos negócios e partiu de Florence para sempre. Poucos meses depois, a cidade ficou deserta.
   Enrolado em seu cobertor, o xerife pensava no passado de Florence. Quase de maneira inconsciente, ele enfiou a mão no bolso da camisa e retirou um recorte de jornal; o anúncio fúnebre que o colocara no caminho da vingança, depois de tantos anos:

   Todos os amigos e fiéis companheiros choram a
   partida prematura de 

                  RAYMOND CORBETT

   A quem se lembrar dele, jovem e INOCENTE, pede-se
   ir à sepultura do 

                 VELHO, QUERIDO RAY

   Levar um sinal de reconhecimento. Encontro no 
   armazém de Thomas Elliot, perto de Florence, 
   Montana, em 25 de setembro. 
    

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Sombras do Passado - Primeira Parte

   O xerife Al Fitzpatrick cavalgava de volta para Flagstaff, ao longo da pista que levava ao rancho Silverbell. Era um pôr do sol de início de outubro e Fitzpatrick pensava na conversa que acabara de ter com o tio, no rancho. E também pensava, agora, na viagem que estava para começar a fazer. Era uma longa viagem até o Montana, mesmo fazendo boa parte dela de trem. Mas isso não o preocupava.
   Há muito tempo não pensava em Florence, mas o anúncio fúnebre que lera no jornal do dia anterior mudou tudo. Pensou com calma no que fazer e bem antes do amanhecer já estava de pé. Delegou algumas tarefas a Mendez, o vice-xerife, e passou o dia organizando sua viagem. No final da tarde foi ao rancho do tio para lhe mostrar o recorte de jornal que fizera despertar velhos ódios e recordações. Era um assunto que dizia respeito aos dois, embora somente ele, Fitzpatrick, pudesse fazer algo a respeito.
   Agora, ao voltar do rancho, pensava na conversa que tivera. O tio e Mendez eram os únicos que sabiam da viagem, mas só o tio sabia o motivo. Mais cedo Mendez havia perguntado quando ele ia voltar:
   - Não sei, Robert - disse o xerife, montando em seu cavalo.
   - Mas o que vou dizer às pessoas? Em algum momento elas vão se perguntar onde está o seu xerife.
   - Sua tarefa é cuidar disso.
   - Mas...
   - O cargo de vice-xerife tem suas obrigações, Robert - disse Fitzpatrick, se virando no cavalo. - Adeus.
   Fitzpatrick sabia que Robert Mendez podia se virar muito bem em sua ausência. Isso não era motivo para preocupação. Planejava partir de Flagstaff em, no máximo, três horas. Não queria que o vissem partindo e isso também iria evitar um encontro com Mendez, que certamente esperava uma partida pela manhã.
   Observando a paisagem, o xerife pensava no que estava por vir. Muito além do horizonte, muito além daquela fina linha de montanhas estava seu destino. Florence, Montana. Após vinte e cinco anos ele iria voltar lá, embora agora devesse restar bem pouco de Florence. Era uma cidade-fantasma. Mas o anúncio fúnebre indicava que em breve ela receberia visitantes bem vivos.
   O sol já estava abaixo da linha do horizonte e ele começou a avistar a cidade. Olhava através da imensidão daquela paisagem desértica feita por Deus, se lembrando dos detalhes da conversa que acabara de ter. Se Deus o havia colocado no caminho certo para conseguir sua vingança; se Deus havia contemplado um de Seus filhos com a chance de fazer justiça era obrigação dele fazer Sua vontade. Mas Fitzpatrick sabia que a ação divina não se estendia para além disso. Teria que tomar cuidado com os inimigos que não tivera oportunidade de enfrentar há vinte e cincos anos. Com essa gente não se brinca, pensou ele.
   O xerife entrou na cidade pela rua principal e amarrou seu cavalo na frente da delegacia. Se dirigiu para os degraus, entrou rapidamente e fez os últimos preparativos. As celas estavam vazias e isso era uma sorte. Poderia deixar a porta da delegacia encostada e com a chave em cima da mesa, conforme tinha planejado. Mendez chegaria por volta das dez da noite para fazer a troca de guarda.
   Já era noite quando o xerife Fitzpatrick deixou Flagstaff, duas horas depois de entrar na delegacia. Era o começo de uma longa viagem em que ele iria reencontrar o passado. E quem sabe o que mais?, pensou. Sua estrela de xerife não estava pendurada na camisa, como de costume. Ia guardada no bolso.
   Quando, mais tarde, Robert Mendez se aproximou da delegacia para fazer a troca de turno, logo percebeu que alguma coisa estava errada. Estava tudo escuro lá dentro. Se aproximou, testou a maçaneta, e viu que a porta estava apenas encostada. Abriu a porta chamando pelo xerife. Nada. Acendeu o lampião e percorreu os olhos pelo escritório. Não havia nada fora do lugar e as celas estavam vazias, como naquela manhã. Seus olhos recaíram sobre a mesa, onde a bíblia de Fitzpatrick, que ele conhecia tão bem, estava aberta. A chave da delegacia estava pousada sobre as páginas. Mendez deu um sorriso e entendeu o que havia acontecido. O xerife de Flagstaff tinha partido, sabe-se lá pra onde e deixando a cidade sob sua responsabilidade.
   Ele pousou o lampião sobre a mesa, pegou a chave, olhou a página em que a bíblia de Fitzpatrick estava aberta e confirmou que ele havia mesmo partido. Em todos aqueles anos como vice-xerife ele havia aprendido que Al Fitzpatrick sempre lia aquela passagem da bíblia antes de partir em alguma perseguição ou missão perigosa. O cargo de xerife tem seus riscos, Robert. Era o que ele teria dito. Com esse pensamento na cabeça, Mendez leu a passagem bíblica. Era o Salmo 120:

O Senhor é teu guarda,
  o Senhor é teu abrigo, sempre ao teu lado.
De dia, o sol não te fará mal;
  nem a lua durante a noite.
O Senhor te resguardará de todo o mal;
  ele velará sobre tua alma.
O Senhor guardará os teus passos,
  agora e para todo o sempre.

   
   

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Pueblo Feliz

   Frank Doyle estava parado na soleira da porta, as pernas entreabertas, observando o outro lado da rua. Uma mão estava bem no meio do  cinturão e a outra segurava um copo com uísque. Olhava para uma das casas de adobe de dois andares chamada Cantina Castilla.
   - Parece que lá dentro está animado - disse ele, escutando algumas risadas vindas da Cantina e tomando mais um gole do uísque.
   Atrás dele, a mulher sentada numa mesa levantou os olhos e observou as costas de Frank. Ela sabia que aquele tipo de comentário não esperava uma resposta. Ele dizia mais pra ele mesmo do que qualquer outra coisa.
   - Animado até pra valer uma visita.
   Mais um comentário que não esperava resposta. A mulher desviou os olhos para a garrafa de uísque em cima da mesa. Frank andara bebendo o dia todo. Era fácil notar pela fala meio pastosa e seu jeito de andar. Ele chegara mais cedo ao povoado, Pueblo Feliz, que só não era mais um dos tantos povoados miseráveis do Novo México porque ficava na pista que ligava Roswell a Albuquerque.
   Ela era uma mulher bonita e com o corpo firme, e era fácil notar sua ascendência mexicana na pele morena e no contorno do rosto. Morava numa casa de barro. Há uns anos, depois que o marido morreu, começou a sentir a casa vazia. Até que Frank chegou. Sabia que ele era casado, mas isso não importava pra ela. E nem a incomodava. Quando Frank chegava ela voltava a assumir o papel submisso de quando o marido era vivo. Ele trazia boas peças de algodão, porcelana e chocolate. Mas ela achava uma pena ele não ser atraente.
   Ele batia nela, mas ela aceitava. Os homens eram assim e ela sabia disso. Num mesmo homem havia o bom e o mau. Ela sabia que Frank era o tipo de homem que falava pouco em casa, somente o necessário para começar e terminar uma briga com a mulher. Agora, por exemplo, ela achava que Frank estava pensando nela. Pensando no porquê ela existia. Pensando que se ela simplesmente fosse embora, ele poderia ser homem outra vez. Esses eram os homens que  podiam justificar praticamente tudo que faziam por acharem que eles eram os heróis da sua própria história; nunca olhavam para si mesmos, mas fugiam de casa quando podiam.
   Frank terminou seu uísque e voltou para a mesa caminhando devagar e com calma. Posou o copo, pegou seu chapéu e disse, sem olhar para a mulher:
   - Vou na cantina.
   - Não quer jantar antes?
   Ele não respondeu e saiu para a rua, fechando a porta devagar. Ela achou melhor não insistir. Não queria apanhar sem motivo de novo, como da última vez que Frank fora lá.
   Frank atravessou a rua e parou na frente da Cantina. Olhou um pouco para dentro e viu que havia um bom movimento. Vamos conferir as muchachas da Cantina, pensou ele. Deu mais uns passos e entrou. Como de costume, várias cabeças se voltaram para ver o novo visitante. Alguns cumprimentaram Frank por conhecerem-no de vista, outros fizeram acenos com a cabeça. Frank escolheu uma mesa perto da janela, à esquerda. Se sentou na cadeira colada na parede e olhou a Cantina.
   O clima estava realmente animado. Havia quatro garotas circulando e a mesa perto do balcão tinha quatro homens falando alto e cantando. Bebiam e chamavam as garotas com frequência. As outras mesas estavam  quase todas ocupadas.
   Frank estava no segundo copo de uísque quando aconteceu: uma das garotas caminhava com uma bandeja. O homem da mesa ao lado se levantou abruptamente e a garota desviou. Ao fazer isso, perdeu o equilíbrio, cambaleou para o lado e derrubou uma caneca de cerveja em Frank. 
   A Cantina silenciou subitamente com o barulho. Todos viram Frank se levantar com o ventre, a virilha e parte da perna esquerda empapados de cerveja.
   - Desculpe, senhor - disse a garota, também se levantando. - Fui tentar desviar dele, mas acabei perdendo meu equilíbrio. Perdão.
   - Limpe logo essa sujeira - disse ele. 
  - Sim, senhor - ela disse, saindo para as dependências da Cantina, enquanto os outros voltavam para suas conversas.
   Frank se sentou. Terminou seu segundo copo quando viu a garota retornar com um balde e um pano. Ela se agachou e começou a limpar o chão. Quando terminou, Frank disse:
   - Agora pode começar a me limpar.
   - Vou pegar um pano limpo pro senh... - ela disse, se virando para ele enquanto falava. Ela interrompeu a frase quando viu o que ele fazia. Frank estava de pé, com um revólver Remington apontado pra ela.
   - Quero ver você lamber essa roupa e tirar a cerveja toda dela. Quero minhas roupas do mesmo jeito que elas estavam quando entrei aqui. 
   A mulher, ainda abaixada, o olhou assustada. Então baixou a cabeça e disse: - Senhor, me desculpe. Posso trazer um pano limpo, se quiser.
   - Não, não - disse Frank, já com ar de riso. - Essa boca linda é melhor que um pano.
   A mulher levantou a cabeça. Tinha lágrimas nos olhos: - Posso lavar suas roupas se as deixar comigo amanhã. 
   Foi então que Frank notou que tudo estava quieto demais. Olhou em volta e viu que a Cantina inteira olhava a cena. Um homem que estava bebendo no balcão pousou seu copo e começou a caminhar lentamente em direção a eles. Era de meia-idade, cabelos castanhos e um pouco mais baixo que Frank.
   - Não se aponta uma arma pra uma  mulher, homem - disse ele, calmamente.
   - Mesmo? - perguntou Frank.
   - Não, não mesmo. - disse ele, avançando mais uns passos e parando a dois metros de Frank.
   - Tem razão. Não preciso de uma arma pra resolver minha conta com essa galinha - disse Frank, colocando a Remington no coldre. Olhou para o homem e viu que no coldre dele havia uma Smith & Wesson.
   Frank se virou para ele e o encarou. Atrás dele, ouviu a garota se levantar e sair. A Cantina inteira olhava a cena: - Há uma coisa que também não se faz - disse Frank. - Se meter no problema dos outros.
   - Não podia ficar olhando e deixar você fazer aquilo.
   - Parece que só você achou que tinha que se importar.
   - Alguém tinha.
   Frank desceu a mão para bem perto da Remington.
   - Ainda é permitido apontar uma arma para um homem, não é?
   - Sim, mas dizem que é bom ser mais rápido que ele.
   - E como é que a gente descobre?
   - Só tem um jeito de descobrir.
   Ouviu-se a voz nervosa do barman:
   - Cavalheiros, por favor... - mas foi tudo que ele conseguiu dizer.
   Frank baixou a mão direita para seu revólver, mas o outro foi mais rápido. Ele avançou rápido, e usou sua mão esquerda para segurar a mão direita de Frank, que estava segurando o cabo da Remington, mas não tinha tido tempo de sacar. Com o braço direito o homem deu uma cotovela violenta na cabeça de Frank, que cambaleou para o lado, bateu de costas na parede e voltou um passo para a frente, oscilante. Por um instante Frank parou. Então se recuperou e começou a sacar sua arma. O outro homem estava pronto, sacou sua Smith & Wesson e deu um tiro que atingiu Frank no olho direito. O disparo detonou ensurdecedor dentro da Cantina e o som ainda estava no ar quando Frank bateu outra vez de costas na parede e caiu para frente, ficando imóvel no chão e deixando uma grande mancha de sangue na parede, com pequenos pedaços de miolos e cabelo grudados nela.
   Por um momento tudo foi silêncio.
   - Meu Deus... - disse alguém.
   O homem guardou sua arma no coldre e olhou para a Cantina: - Todos viram que foi legítima defesa. Ele sacou primeiro.
   - Todos vimos, forasteiro, mas ele não era um homem qualquer. Você pode ter problemas - disse o barman.
   - Se for o caso, disso eu cuido depois. Quanto te devo?
   - Dois dólares.
   Ele deixou duas moedas no balcão e depois saiu. Foi até o estábulo com calma, pegou seu cavalo, pagou e se dirigiu para a saída de Pueblo Feliz. Montou, acendeu um cigarro e se foi sem remorsos na consciência. 
   

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Planícies

   Alguns meses já haviam se passado desde o dia em que Andrew Stafford saíra de Austin, Texas, para caçar três homens culpados por homicídio e roubo. Ele não estava sozinho; ia na companhia de Thomas Affeldt. Eles não sabiam se iam trazer os bandidos vivos. Provavelmente não. Na cabeça deles, gente como aquela era para ser caçada e morta. 
   Ambos eram rangers do Texas. Estavam na pista dos homens que haviam matado outro ranger durante o assalto a um banco em Oklahoma City. Já haviam passado por quatro estados, numa caçada que já estava se tornando longa demais. Agora estavam numa imensa planície. Era um fim de tarde de setembro e o frio entrava nos ossos. Há uma hora a planície havia mudado. Não era mais uma imensa extensão plana de prado e relva. A planície agora ondulava em pequenos montes e algumas colinas mais altas, embora a vegetação não mudasse nunca. Eram as Rolling Plains, na divisa do Montana com o Wyoming. O vento do Montana vinha das Rochosas e passava cortante pelos cavaleiros.
   - Aqui escurece cedo... Vamos parar ou avançar um pouco mais?
   - Acho melhor pararmos. Esse frio está piorando rápido.
   Stafford desmontou e começou a tirar a sela de seu cavalo. Affeldt fazia o mesmo. Durante a viagem os dois não costumavam falar muito; deixavam isso para a noite, ao redor da fogueira. Nas últimas duas semanas o tempo havia esfriado bastante e a pista dos três homens também. Isso não melhorava as coisas, mas desistir estava fora de cogitação. Pistas longas são assim: esquentam e esfriam, principalmente em territórios pouco habitados como aqueles. 
   Depois que comeram, Affeldt pegou um charuto e acendeu-o. Gostava de deixar o charuto queimar devagar enquanto o jogava pelos cantos da boca, sentindo o gosto do fumo. Observava Stafford relaxado ao lado do fogo, a cabeça apoiada na sela, pensativo. Affeldt vinha reparando em Stafford todas as noites e quase sempre via a mesma coisa: apesar da postura relaxada, sua expressão era de rancor. Stafford com certeza não faria questão de pegar os três homens vivos e Affeldt concordava com ele. Devo estar com a mesma raiva no rosto, mas não vejo porque não tenho um espelho comigo, pensou ele.
   - Ainda deve faltar uns quatro dias até Bozeman - disse Stafford.
   - Se tudo correr bem - respondeu Affeldt. - Lá vamos achar pistas mais frescas.
   - Não importa se não encontrarmos. Não vou largar dos pés deles.
   - Se não tivermos pistas frescas deles em Bozeman pode ficar difícil.
   - Pode mesmo - disse Stafford, pensativo. - Aqueles bastardos teriam todo o território do Noroeste pra se esconder.
   Affeldt ficou matutando aquela hipótese. Bozeman poderia ser o começo da última parte de uma busca já bem longa. Ou poderia ser apenas mais uma etapa da caçada. No fundo, isso não importava nem pra ele, nem pra Stafford. Os dois estavam em busca dos assassinos de um amigo, não de mais um ranger que desconheciam.
   - Já mandou quantos pra forca, Thomas? - perguntou Stafford.
   Affeldt se surpreendeu com a pergunta.
   - O juiz é quem manda, não eu.
   - Você entendeu.
   - Não sei... Nunca contei esse tipo de coisa. Você conta?
   - Não, não conto. Apenas pensei nisso agora.
   Stafford estava pensando na captura dos três homens. Não iam capturá-los para serem enforcados, claro. A coisa ia terminar de um jeito mais prático. Do jeito certo, ele pensou. Mas se pegou perguntando quantos homens, afinal, já havia ajudado a mandar pra forca. Não sabia a resposta.
   - Bom, eu acho que uns trinta - continuou Affeldt. - Talvez um pouco menos.
   - A conta parece razoável - disse Stafford, lentamente. - Já se arrependeu de algum?
   Affeldt olhou para o ranger do outro lado da fogueira e franziu o cenho: - Arrepender? Claro que não. Rangers fazem isso, não? 
   - Sim, fazemos. Não quis dizer bem arrepender... - Stafford pensou um instante, procurando a palavra certa. - Quis dizer um caso em que você acaba se sentindo estranho. Ou um pouco deslocado - Ele pensou mais um pouco. - Não sei explicar direito.
   Affeldt aspirou um pouco de seu charuto: - Já mandou a pessoa errada pra forca, Andrew?
   Stafford não respondeu de pronto. Continuou olhando pro céu e seu rosto se livrou um pouco da raiva que o acompanhava há meses. Ele se virou um pouco, apoiando-se num dos braços.
   - Já tive que mandar um menino pra forca.
   - Um menino?!
   - Não, não uma criança. Era um frangote de uns quinze ou dezesseis anos. Talvez dezessete...
   - O que ele fez?
   - Ele tinha matado uma garota de quatorze anos.
   Affeldt nada disse. Continuou olhando para Stafford.
   - Na época, as pessoas disseram que foi um crime passional. Falavam sobre paixão e desprezo, esse tipo de coisa. O garoto disse que não. Disse que fizera a coisa certa e que não lamentava nada. Não sei o que ele entendia por certo ou errado, mas isso não importava. E nem me importava o motivo daquilo tudo -Stafford olhou para a fogueira um instante. - Pareceu que, de repente, a cidade tinha muito mais gente que de costume. Os jornais, as pessoas... só se falava daquilo.
   Affeldt aspirou mais um pouco do seu charuto.
   - Onde foi isso?
   - Lá pelas bandas de Colorado Springs.
   - Foi há muito tempo?
   - Uns dez anos atrás.   
   - Você viu o enforcamento?
   - Vi.
   Stafford ficou em silêncio por um tempo, pensando. Affeldt estava impressionado com aquilo, embora soubesse que coisas como essa acontecem com uma certa freqüência. Pensou na mãe da tal garota e de como ela se sentiu ao ver o menino no patíbulo. Deve ter pensado na justiça sendo feita, mas, com os diabos!, era apenas um menino!, pensou Affeldt.
   - Quando o garoto foi enforcado, eu me senti estranho - disse Stafford. - Sabia que fizera meu trabalho, que fizera a coisa certa. Mas, por outro lado, me senti deslocado. Era como se a lei aplicada naquele frangote não fizesse sentido, mesmo eu sabendo que era o certo. Entende o que eu quero dizer?
   Affeldt fez que sim com a cabeça: - Parece que o mundo não faz sentido quando um garoto é colocado na frente de um juiz.
   - É... muito menos no patíbulo, com uma gravata de corda.
   Stafford voltou a se deitar com a cabeça apoiada na sela, pensando. Ele e Affeldt estavam caçando três homens com o desejo de realizar uma vingança. Não sabia o que iam encontrar no final daquilo tudo, só sabia que tinha que ser feito. 
   - Vamos ter a oportunidade de vingar nosso amigo - disse Stafford.
   - Nem todo mundo tem.
   - Nem todo mundo tem... - repetiu Stafford.
   - Às vezes, fico pensando nisso. 
   - Nisso o quê?
   - Nosso amigo morreu com uma bala nas costas. Não teve chance de se defender.
   Stafford demorou a responder. Por fim, disse: - Ao menos ele teve outras chances antes disso. Fico pensando naquelas pessoas que passam a vida limpando o chão de um saloon, ou lavando pratos... Quando elas levam uma bala nas costas, o último pensamento delas deve ser: "Eu nunca tive minha chance".
   Affeldt suspirou: - Não vejo a hora de acabar logo com isso.
   - Eu procuro não pensar nas coisas desse jeito. Estamos indo fazer a coisa certa, Thomas. Somos rangers, mas porque andar acompanhado da lei em casos como esse? Aqueles bastardos nunca respeitaram lei alguma. Vão querer se proteger atrás dela logo agora?
   - Concordo com você, Andrew, mas nós não estamos indo recuperar o tempo que tiraram do nosso amigo.
   - Sei que não - respondeu Stafford, desgostoso. - Não dá pra recuperar o tempo que alguém tira de você. Ele fica sempre do lado de fora da porta.
   - Às vezes me pergunto onde uma vingança pode nos levar - disse Affeldt. - Tenho a impressão que é mais uma daquelas coisas da vida em que se cria uma expectativa enorme e, depois, a gente vê que não representa grande coisa.
   - Espero que não.
   - Eu também.
   Affeldt terminou seu charuto, jogou o que restara dele na fogueira e se deitou, apoiando a cabeça na sela. Puxou o cobertor pra junto do corpo, tentando se proteger melhor do frio. Depois, enquanto Stafford alimentava a fogueira, pensou na história do garoto. Mais um que não teve sua chance, pensou. Pensando bem, ele teve, se é que se pode colocar a coisa dessa maneira. Sabia que Stafford fizera a coisa certa, mas não conseguia se ver no lugar do amigo. 
   Na manhã seguinte, partiram para Bozeman.